Dona Isaura estava cansada. Havia passado o dia sentada na calçada da Avenida Contorno oferecendo seus doces para quem quer que passasse e não havia juntado mais de 5 réis, já descontados os 2 que um moleque de rua havia arrancado de suas ainda calejadas pelo trabalho da fazenda mas nem por isso menos suaves mãos. Mesmo assim, Dona Isaura não deixava de sorrir. Sabia que se não fosse pela tinta da caneta daquela princesa tão famosa, ainda estaria tratando de nhonhô Manoel ou cozinhando para toda a família do engenho. Não sentia-se, então, no direito de reclamar dos trocados que conseguia vendendo seus quitutes na calçada. Engraçado - pensou com seus botões já tão velhos que caíam, um a um, todos os dias, e eram recosturados, um a um, todas as noites - ele não veio hoje. Quando já se preparava para guardar as sobras das vendas do dia, que seriam a janta do mesmo, ele apareceu no final da rua. Sorrindo com aquele sorriso só dele e se aproximando.
Não sabia porquê, mas parecia que toda vez que ele passva em sua frente, ainda que sequer olhasse para ela, Dona Isaura sentia que Salvador ficava ainda mais quente, a Avenida Contorno ainda mais cheia e os doces mais doces. Que bobagem a sua. Ele era um comerciante português, provavelmente no Brasil só por uma temporada e ela, uma ex-escrava sem perspectiva de sair das calçadas da Avenida Contorno. Naquele dia, no entanto, ele parou, olhou para ela e perguntou-lhe o preço do pastelzinho de belem. Ora, que mal teria em fazer àquele homem que parecia trabalhar tanto quanto Dona Isaura um agrado e oferecer-lhe um pastelzinho por conta da casa? Ele já adoçava seus dias, mesmo. É uma pena que na época Dona Isaura não soubesse ainda a receita de beijinhos, pois teria sido este o agrado constante das próximas semanas, frutos daquele primeiro e inocente pastelzinho. E no meio de agrados, beijinhos, docinhos e Avenida Contorno, Dona Isaura e o mascate se entregaram um ao outro, como tantos outros casais brasileiros, e ajudaram a formar a mistureba cultural, racial e genial que é o povo brasileiro.
Ajudaram tendo filhos. O primeiro morreu no parto, o outro, seguiu os passos do pai, a terceira aprendeu a fazer doces e o quarto se casou com uma moça recém-chegada da capital. Esses dois gostaram da idéia do beijinho, e, já fora da Avenida Contorno, tiveram uma filha que traía o marido, um que virou advogado e um, esse, aquele que era quase tão negro quanto sua saudosa vó Isaura, que casou-se com uma alemã que gostava de bater no peito e esbravejar para todos sobre sua origem ariana. O neto da doceira e a ariana meio caduca continuaram a brincadeira e tiveram um menino que sumiu na fazenda ainda novo, uma moça bonita que gostava de ler, um rapaz que seduzia moças casadas, solteiras e noivas, uma filha mais velha que cuidou de todos quando a mãe se foi e uma outra que casou com um rapaz que estudava. O jovem casal resolveu sair de Minas e ganhar a vida no Goiás. Malas na mão do estudante, agora já bancário, e, nos braços da moça, uma filha com os cabelos loiros da ariana, um moleque implicante, um rapaz que viria a morrer dali a dois ou três anos, uma mocinha mais nova e uma tímida menina do meio, que acabou se arranjando com um jovem que chegava a Brasília de Rondônia a pouco. Esses dois, já sem idéia de quem tenha sido Isaura, tiveram ainda um menino que vai à igreja, um filho nudista que não quer ter crias, um que não sabe bem o que quer e, mais tarde, uma adotada. E a receita do pastelzinho de Dona Isaura até hoje reúne todos eles.
4 comentários:
Em Goiás, cacete. Em Goiás.
Mas o texto tá maravilhoso, apesar desse disparate ai. :P
Acho falar o goiás tão engraçado xD
Ô, Gabriel, cada texto bom! :D
não sabia que tu escrevia bem desse tanto, bicho! e, assim, eu me identifiquei com a parte do menino que vai a igreja, sei quem é o que não sabe bem o que quer e conheço a adotada. agora, me explica o nudista que não quer ter crias!?
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