segunda-feira, 18 de maio de 2009

OK. Vamos lá. Estamos em 20 e poucos de 2012. Os Maias acertaram. Ou dias depois de qualquer que seja a teoria apocalíptica que mais agrade. O fato é que por alguma sacanagem de Deus, do destino ou de carma mesmo, o diabo do mundo resolveu acabar e deixar um homenzinho pra contar a história. Um homenzinho e um pedaço de papel. O resto tudo é pó. Tá bom. Um homenzinho, um pedaço de papel e um estoque vitalício de comida enlatada. Fora isso, pó. Tudo o que o mundo conhecia, todos os arranha-céus, todos os livros, todos os discos. Poeira. E o homenzinho lá, com seu pedaço de papel.

O céu agora é sempre escuro. Nuvens? De poeira, sim. Carros não buzinam freneticamente para um sinal vermelho, cães não latem para o carteiro e aqueles moleques que costumavam ficar na calçada se drogando pra fugir da fome já não estão mais lá. Adivinha só? Pó. E o homenzinho? Parado com seu pedaço de papel.

Dias atrás, aquelas ruas pareciam ter vida também. Era tanta gente, tanta cor, tanta coisa. Hoje as ruas estão mais mortas do que a poeira que as cobre. A poeira de tudo aquilo que as dava vida. Tudo morto. Mas lá estava o homenzinho. Ele e seu pedaço de papel.

O vento não leva seus cabelos. A lua não reflete em seu olhar. A vida quase não pulsa mais dentro dele. Seus olhos cinza baixam e passam pelas  palavras rabisacadas no pedaço de papel. Ele pega uma caneta e escreve mais algumas embaixo. Era o último texto. O último credo. E o homenzinho? Nem ele estava mais lá.

 

 

O Último Credo

Augusto dos Anjos

 

Como ama o homem adúltero o adultério


E o ébrio a garrafa tóxica de rum,


Amo o coveiro - este ladrão comum


Que arrasta a gente para o cemitério!





É o transcendentalíssimo mistério!


É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,


É a morte, é esse danado número Um


Que matou Cristo e que matou Tibério!

 



Creio, como o filósofo mais crente,


Na generalidade decrescente


Com que a substância cósmica evolui...



 

Creio, perante a evolução imensa,


Que o homem universal de amanha vença


O homem particular eu que ontem fui!

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Senhor do destino

Aquela noite, sonhou que andava nas estrelas. Já havia sonhado isso algumas vezes. No entanto, nem passear na Via Láctea, nem ser um animal e nem aquele sonho no qual ele voltava a ser jovem, sempre protegido pelo pai, assassinado por causa de uma vaca magrela, chegavam perto do grande sonho da vida de seu Joaquim: conseguir guiar sua própria vida. Conseguir saber dizer aos filhos quando seria a próxima refeição da família. Conseguir dizer à esposa que juntaria uns trocados para dar-lhe um novo vestido. Conseguir dizer a si mesmo que era um homem de respeito. O pior de tudo, é que no sertão do Ceará, esse parecia o mais distante de todos os sonhos de Seu Joaquim.

Quem já foi ao Ceará sabe que homem cearense é cabra macho e que não se satisfaz só com sonhar. E já que a Via Láctea fica longe e que não dava pra virar um elefante, não importa quantos amendoins Seu Joaquim comesse, lá foi ele correr atrás de seu sonho mais distante. Dois mil e quatorze quilômetros, para ser mais exato. A distância entre Choró, a pobre vila que viu seu Joaquim crescer e a nova capital brasileira parecia infinita aos olhos cansados do cearense e de sua família, que pegaram ônibus, caminhão, carona e jegue, mas enfim chegaram num tal de Plano Piloto. Ironia de Deus, pensou Seu Joaquim. A cidade escolhida para que a família de Choró enfim pilotasse sua vida tinha o centro apelidado de Plano Piloto. É destino. É aqui mesmo que vamos ficar.

Não deu. Brasília é uma cidade de promessas mas também uma cidade que engana. E entre as obras de Niemeyer e o sonho de Kubitschek, Joaquim se perdeu. Se perdeu e entendeu que aquele lugar não se chamava Plano Piloto porque era o lugar onde ele pilotaria a sua vida, mas porque era onde Seu Joaquim assistiria a sua vida sendo pilotada. Pilotada por medo, fome, sede, frio, trabalho, trabalho e trabalho. E parecia que o sonho de Seu Joaquim estava a mais de dois mil e quatorze quilômetros de distância.

Só não é certo dizer que Seu Joaquim e sua família comeram o pão que o diabo amassou porque, na verdade, eles não comeram quase nada. Foram anos de um sofrimento mais intenso que o sol do sertão do Ceará. Hoje, Seu Joaquim finalmente pilota sua vida, do jeito que sempre sonhou. Pilota sua vida, a de muitos outros e um ônibus amarelo que sai de Planaltina e chega na rodoviária daquele tal Plano Piloto. Finalmente seu Joaquim tem o controle que sempre quis dar à sua vida, e, quando perguntado o que tem a dizer sobre sua jornada até aqui, responde bem-humorado “hoje eu dou Graças à Deus que nem tudo na vida é passageiro”.

 

segunda-feira, 4 de maio de 2009

De trás pra frente

Dona Isaura estava cansada. Havia passado o dia sentada na calçada da Avenida Contorno oferecendo seus doces para quem quer que passasse e não havia juntado mais de 5 réis, já descontados os 2 que um moleque de rua havia arrancado de suas ainda calejadas pelo trabalho da fazenda mas nem por isso menos suaves mãos. Mesmo assim, Dona Isaura não deixava de sorrir. Sabia que se não fosse pela tinta da caneta daquela princesa tão famosa, ainda estaria tratando de nhonhô Manoel ou cozinhando para  toda a família do engenho. Não sentia-se, então, no direito de reclamar dos trocados que conseguia vendendo seus quitutes na calçada. Engraçado - pensou com seus botões já tão velhos que caíam, um a um, todos os dias, e eram recosturados, um a um, todas as noites - ele não veio hoje. Quando já se preparava para guardar as sobras das vendas do dia, que seriam a janta do mesmo, ele apareceu no final da rua. Sorrindo com aquele sorriso só dele e se aproximando.

            Não sabia porquê, mas parecia que toda vez que ele passva em sua frente, ainda que sequer olhasse para ela, Dona Isaura sentia que Salvador ficava ainda mais quente, a Avenida Contorno ainda mais cheia e os doces mais doces. Que bobagem a sua. Ele era um comerciante português, provavelmente no Brasil só por uma temporada e ela, uma ex-escrava sem perspectiva de sair das calçadas da Avenida Contorno. Naquele dia, no entanto, ele parou, olhou para ela e perguntou-lhe o preço do pastelzinho de belem. Ora, que mal teria em fazer àquele homem que parecia trabalhar tanto quanto Dona Isaura um agrado e oferecer-lhe um pastelzinho por conta da casa? Ele já adoçava seus dias, mesmo. É uma pena que na época Dona Isaura não soubesse ainda a receita de beijinhos, pois teria sido este o agrado constante das próximas semanas, frutos daquele primeiro e inocente pastelzinho. E no meio de agrados, beijinhos, docinhos e Avenida Contorno, Dona Isaura e o mascate se entregaram um ao outro, como tantos outros casais brasileiros, e ajudaram a formar a mistureba cultural, racial e genial que é o povo brasileiro.

            Ajudaram tendo filhos. O primeiro morreu no parto, o outro, seguiu os passos do pai, a terceira aprendeu a fazer doces e o quarto se casou com uma moça recém-chegada da capital. Esses dois gostaram da idéia do beijinho, e, já fora da Avenida Contorno, tiveram uma filha que traía o marido, um que virou advogado e um, esse, aquele que era quase tão negro quanto sua saudosa vó Isaura, que casou-se com uma alemã que gostava de bater no peito e esbravejar para todos sobre sua origem ariana. O neto da doceira e a ariana meio caduca continuaram a brincadeira e tiveram um menino que sumiu na fazenda ainda novo, uma moça bonita que gostava de ler, um rapaz que seduzia moças casadas, solteiras e noivas, uma filha mais velha que cuidou de todos quando a mãe se foi e uma outra que casou com um rapaz que estudava. O jovem casal resolveu sair de Minas e ganhar a vida no Goiás. Malas na mão do estudante, agora já bancário, e, nos braços da moça, uma filha com os cabelos loiros da ariana, um moleque implicante, um rapaz que viria a morrer dali a dois ou três anos, uma mocinha mais nova e uma tímida menina do meio, que  acabou se arranjando com um jovem que chegava a Brasília de Rondônia a pouco. Esses dois, já sem idéia de quem tenha sido Isaura, tiveram ainda um menino que vai à igreja, um filho nudista que não quer ter crias, um que não sabe bem o que quer e, mais tarde, uma adotada. E a receita do pastelzinho de Dona Isaura até hoje reúne todos eles.