sábado, 23 de junho de 2012

Você



Que não merece a raiva
Que não merece a lágrima
Que não merece a dor; nem uma pontinha dela

Que não merece o passado que tem
O futuro que não tem
E o presente, que tenha o que merece

Que não merece o coração
Que não merece a canção
Que não merece o sentimento

Que não merece sequer essas palavras.




Mas ah, se merecesse

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Ex-Redator

Pela primeira vez não me preocupo mais com a beleza das palavras. Do que sai dos meus lábios, o ritmo pouco importa. Fluidez não existe mais na minha gramática. Aliás, minha gramática virou lenha na nossa fogueira. Tudo que eu já soube alimentou o fogo que te aqueceu. Estranho é pensar que o único arrependimento que me ocorre é o de não ter aprendido mais, só para te deixar mais quente. Se dependesse de mim, nossa fogueira seria incessante, e eu passaria todos os dias estudando, para que você pudesse passar todas as noites aquecido.

As mesmas palavras que um dia me confortaram, hoje te aquecem. E eu que achava que não existia prazer maior que a leitura.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O não-dia

Eu podia passar o resto da minha vida aqui, só assistindo enquanto você dorme. Uma hora você ia ter que comer, beber, mijar. Os piores momentos de cada dia. Sabe, até romantismo tem limites. Não disse que faria. Disse que podia. Não vai levantar pra almoçar? Não tenho fome. Você? Acho que fico mais um pouco. Ia acabar comendo comida de ontem mesmo. O sol já se pôs. Tem planos para a noite? Eu não. Então fica. Fico. Ama. Amo. O resto da minha vida.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Porque eu te amo.

-Quem é você?

-Te interessa?

-Só responde.

-Marie.

-Esse é seu nome. Não foi isso que eu perguntei.

-Então o quê?

-Quem é você?

-Sou uma artista plástica.

-De novo, não era isso.

-O quê então, porra?

-Quem é Marie?

-Eu.

-Quem é Marie sem sarcasmo?

-Ninguém.

-Engraçada. Quer fazer o favor de responder?

-Sou uma artista frustrada vivendo numa kit da Asa Norte dessas em cima da comercial sem um tostão no bolso. Expulsa de casa aos 16 pelo pai alcóolatra, tatuada desde os 18 e sem um fio de cabelo na cabeça desde junho. Tá bom assim?

-Melhor, mas isso não é você. Essa é sua história. Quem é você?

-Sou uma pintora subversiva bisexual de olhos claros.

-Emprego, estilo, orientação, estética...

-Aonde você quer chegar?

-Em você.

-Ah, claro! Quem sou eu... Eu sou eu, merda.

-Você é uma merda?

-Por que não?

-Acho que entendi quem é você.

-É?

-Sabe tudo isso que você me falou? Desde “te interessa” até esse último “é”?

-Ahn?

-Essa é você.

-Acho que você bebeu demais hoje.

-Não é isso. É que eu...

-Pra que esse interrogatório, mesmo?

-Deixa pra lá. Agora me dá um beijo e volta a dormir, vai.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

"Ele fala?"

            Era dia, bem cedinho. Ou tarde da noite, na verdade, tanto faz. O que importa é o que acabava de descobrir. Descobriu que aquela pessoa engraçada, desajeitada e meio feia que aparecia no espelho não era a mesma que calçava seu par de all-star branco e se arrastava pelo dia. Descobriu que aquele cabelo, um pouco sujo e despenteado pelas horas de sono era, em outros olhos, uma rebeldia mesclada com estilo. Notou que a barba, já crescida, mas ainda um pouco falha, era sua marca registrada, como a haviam definido. Percebeu que todo o seu ser, tudo o que sabia de si, eram parte de uma outra pessoa, um outro alguém que ele nem conhecia, mas que insistia em usar seu cabelo, sua barba e seu all-star.

            A calça velha dele, era o estilo despojado do outro, o olhar cansado era um charminho extra e a timidez intrínseca, um quê de mistério. Parecia que tudo que era dele se moldava de forma a construir esse outro ser. Esse, que era tudo que ele queria ser. E quando percebeu que ele já era tudo o que queria, soube exatamente qual era a cereja que faltava para seu sundae de creme com cobertura de chocolate e castanhas de caju ficar perfeito: sentir-se tudo aquilo. Finalmente se encontrou. Entende hoje que seu cabelo sujo rebelde, sua barba registrada,sua calça estilosa, timidez misteriosa e all-star gasto são tudo parte de uma pessoa só. E nesse dia, quando descobriu tudo isso, se sentiu tudo o que sempre quis. Agora, se é perguntado se ele fala, por causa daquela maldita timidez, ele já tem resposta. 


É um mistério.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

OK. Vamos lá. Estamos em 20 e poucos de 2012. Os Maias acertaram. Ou dias depois de qualquer que seja a teoria apocalíptica que mais agrade. O fato é que por alguma sacanagem de Deus, do destino ou de carma mesmo, o diabo do mundo resolveu acabar e deixar um homenzinho pra contar a história. Um homenzinho e um pedaço de papel. O resto tudo é pó. Tá bom. Um homenzinho, um pedaço de papel e um estoque vitalício de comida enlatada. Fora isso, pó. Tudo o que o mundo conhecia, todos os arranha-céus, todos os livros, todos os discos. Poeira. E o homenzinho lá, com seu pedaço de papel.

O céu agora é sempre escuro. Nuvens? De poeira, sim. Carros não buzinam freneticamente para um sinal vermelho, cães não latem para o carteiro e aqueles moleques que costumavam ficar na calçada se drogando pra fugir da fome já não estão mais lá. Adivinha só? Pó. E o homenzinho? Parado com seu pedaço de papel.

Dias atrás, aquelas ruas pareciam ter vida também. Era tanta gente, tanta cor, tanta coisa. Hoje as ruas estão mais mortas do que a poeira que as cobre. A poeira de tudo aquilo que as dava vida. Tudo morto. Mas lá estava o homenzinho. Ele e seu pedaço de papel.

O vento não leva seus cabelos. A lua não reflete em seu olhar. A vida quase não pulsa mais dentro dele. Seus olhos cinza baixam e passam pelas  palavras rabisacadas no pedaço de papel. Ele pega uma caneta e escreve mais algumas embaixo. Era o último texto. O último credo. E o homenzinho? Nem ele estava mais lá.

 

 

O Último Credo

Augusto dos Anjos

 

Como ama o homem adúltero o adultério


E o ébrio a garrafa tóxica de rum,


Amo o coveiro - este ladrão comum


Que arrasta a gente para o cemitério!





É o transcendentalíssimo mistério!


É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,


É a morte, é esse danado número Um


Que matou Cristo e que matou Tibério!

 



Creio, como o filósofo mais crente,


Na generalidade decrescente


Com que a substância cósmica evolui...



 

Creio, perante a evolução imensa,


Que o homem universal de amanha vença


O homem particular eu que ontem fui!

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Senhor do destino

Aquela noite, sonhou que andava nas estrelas. Já havia sonhado isso algumas vezes. No entanto, nem passear na Via Láctea, nem ser um animal e nem aquele sonho no qual ele voltava a ser jovem, sempre protegido pelo pai, assassinado por causa de uma vaca magrela, chegavam perto do grande sonho da vida de seu Joaquim: conseguir guiar sua própria vida. Conseguir saber dizer aos filhos quando seria a próxima refeição da família. Conseguir dizer à esposa que juntaria uns trocados para dar-lhe um novo vestido. Conseguir dizer a si mesmo que era um homem de respeito. O pior de tudo, é que no sertão do Ceará, esse parecia o mais distante de todos os sonhos de Seu Joaquim.

Quem já foi ao Ceará sabe que homem cearense é cabra macho e que não se satisfaz só com sonhar. E já que a Via Láctea fica longe e que não dava pra virar um elefante, não importa quantos amendoins Seu Joaquim comesse, lá foi ele correr atrás de seu sonho mais distante. Dois mil e quatorze quilômetros, para ser mais exato. A distância entre Choró, a pobre vila que viu seu Joaquim crescer e a nova capital brasileira parecia infinita aos olhos cansados do cearense e de sua família, que pegaram ônibus, caminhão, carona e jegue, mas enfim chegaram num tal de Plano Piloto. Ironia de Deus, pensou Seu Joaquim. A cidade escolhida para que a família de Choró enfim pilotasse sua vida tinha o centro apelidado de Plano Piloto. É destino. É aqui mesmo que vamos ficar.

Não deu. Brasília é uma cidade de promessas mas também uma cidade que engana. E entre as obras de Niemeyer e o sonho de Kubitschek, Joaquim se perdeu. Se perdeu e entendeu que aquele lugar não se chamava Plano Piloto porque era o lugar onde ele pilotaria a sua vida, mas porque era onde Seu Joaquim assistiria a sua vida sendo pilotada. Pilotada por medo, fome, sede, frio, trabalho, trabalho e trabalho. E parecia que o sonho de Seu Joaquim estava a mais de dois mil e quatorze quilômetros de distância.

Só não é certo dizer que Seu Joaquim e sua família comeram o pão que o diabo amassou porque, na verdade, eles não comeram quase nada. Foram anos de um sofrimento mais intenso que o sol do sertão do Ceará. Hoje, Seu Joaquim finalmente pilota sua vida, do jeito que sempre sonhou. Pilota sua vida, a de muitos outros e um ônibus amarelo que sai de Planaltina e chega na rodoviária daquele tal Plano Piloto. Finalmente seu Joaquim tem o controle que sempre quis dar à sua vida, e, quando perguntado o que tem a dizer sobre sua jornada até aqui, responde bem-humorado “hoje eu dou Graças à Deus que nem tudo na vida é passageiro”.